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As coisas que Dona Cinara viu

  • Foto do escritor: Vitor Guedes Gonzales
    Vitor Guedes Gonzales
  • 20 de jul.
  • 2 min de leitura

Dona Cinara lavava roupa. Do tanque via a rua. Na rua viu dois cachorrinhos pateando o asfalto, vindo um de encontro ao outro. O vira-latinha que vinha pela direita tinha um sangue pisado na lateral do corpo, o pêlo endurecido e manchado, uma crosta de dificuldade. A cachorrinha que vinha da esquerda, vinha mancando, a pata toda lanhada, pisando duro. Olharam-se à distância e pararam a marcha. Dona Cinara largou a camisa do marido com um pregador só no varal e foi assistir. O vira-lata olhava pra cachorrinha virando o corpo para esconder o machucão, as pernas se armando numa quase meia-volta, atento, sobrevivente. A cachorrinha na desvantagem da perna cambeta só tinha os dentes pra mostrar, resistentes, primeira e última salvaguarda.


O vira-lata cheirou o ar, sentindo um cheiro de um outro sangue derramado que não o dele, ainda com o pescoço duro, os olhos imóveis. Levantou a pata com o cuidado surrado. Botou uma na frente da outra, avançando um espaço milimetricamente gigantesco, o flanco guardado. A pata ruim da cachorrinha dobrou para trás, ressabiada daquele cachorro que vinha na diagonal, estranho, esquisito, torto. Ele sentia vindo o hálito escapando pelas frinchas daqueles dentes com cheiro imaginário do seu próprio sangue. Estavam se aproximando perigosamente. Dona Cinara panhou uma pedra do vaso, pronta pra rebentar a desgraça que estava se costurando.


A meio palmo, o tempo era infinito, costurado com ponto forte no meio daquela rua, arrematado por franjas de inquietude, penduradas e voando no vento. O vira-lata endireitou o corpo - era um navio cargueiro corrigindo uma rota pra atracar no porto. A mancha escura apareceu no meio daquela rua, um espelho opaco, uma bandeira. Aproximou o focinho da pata ferida, oferecendo o pescoço como contrapartida, desprotegido, e lhe lambeu embaixo do joelho, recuando sem levantar a cabeça. O meio palmo virou um palmo tranquilo. As feridas expostas no universo do asfalto.


Dona Cinara devolveu a pedra pro vaso e voltou pra roupa, esperançosa entre as dores do mundo.

 




 

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