Colcha de retalhos
- Vitor Guedes Gonzales
- 6 de jul.
- 2 min de leitura
Guimarães Rosa tinha toda razão; que viver é um eterno rasgar-se e remendar-se. Talvez Guimarães nem tenha dito isso, ou escrito, mas a citação é boa, poética, com um cheiro brasileiro de café coado. Tem gente que já nasce rasgando e obrigando os outros a remendar-se e passa a vida rodando o facão no lençol alheio. Gente que tropeça sozinha e se prende na maçaneta, abrindo um auto-buraco. Gente que nem percebe que se rasgou.
A vida é também carregar uma colcha de retalhos, cada um que aprenda a costurar da sua maneira. Eu gosto de costurar com dedal, a vida já é perigosa o suficiente sem correr o risco de furar o dedo numa agulha e manchar de sangue a vizinhança de retalhos. Mas às vezes esqueço em que gaveta eu enfiei o dedal e preciso dar um ponto rápido - nem sempre dá tempo de chulear e que fiquem os fiapos pra fora - e nem se eu tivesse todos os anos de experiência da minha avó daria pra evitar furar a carne mole e desamparada. Minha colcha é manchada, não conheço uma que não seja, mesmo que se bote de molho, embeba de álcool, de alvejante. É melhor aceitar logo e não esfarrapar os braços pra exorcizar a tua vida da tua colcha.
Às vezes eu choro enrolado na colcha e limpo as lágrimas com ela mesmo. Uma vez tentei botar fogo na colcha e quase que perco ela toda; costurei umas coisas em volta, mas deixei um pedaço queimado pra lembrar do gosto da fumaça batendo no fundo da garganta. Entendi que nem todo mundo aceita todos os retalhos e escondi da vista alheia, mas enfiei fundo demais num baú com chave, com medo de roubarem, furarem, queimarem, rasgarem, me desnudarem. Eu preciso que Guimarães Rosa volte pra perguntar o que aconteceu com a colcha dele, quero saber se ele andava com ela pelos Sertões, se algum dia a gente aprende a costurar sem deixar rebarba.



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