Os olhos de Monet
- Vitor Guedes Gonzales
- 12 de ago.
- 4 min de leitura
Umas três semanas atrás estava eu num bar de madrugada e estava muito frio. Eis que um rapaz do absoluto nada passa por mim e diz: “Eu adorei seu cachecol”; e continuou andando, seguindo seu caminho sem olhar pra trás. Eu realmente não me lembro da última que eu recebi um elogio tão espontâneo e tão genuinamente sincero assim. Não foi um elogio com interesse, com segundas intenções ou por simpatia. Me senti adorável. Mas, mais do que adorável, me senti visto e foi esse sentimento que eu demorei pra assimilar.
Aquele rapaz com aquele gesto aparentemente tão pequeno fez um buraquinho num véu que começou a rasgar e ainda não terminou. Ser visto parece ser uma coisa tão banal vivendo num mundo de redes sociais, em que a gente acha que vê e é visto todo dia. Fiquei interessado - sem saber que estava - nessa comunhão verdadeira entre olhar e ver; “olhar” como sinônimo de só usar os olhos mecanicamente, “ver” como sinônimo de realmente enxergar, prender-se no objeto e fazer o esforço para assimilá-lo. Nesse espírito fui à exposição “A ecologia de Monet” no MASP dias atrás. Fui sozinho para poder dedicar meu olhar, sem saber que estava indo para isso. Uma pintura me fez ficar parado por muito tempo: Ponte japonesa, pintado em algum momento entre 1918 e 1926. Diferente de todos os outros, ela tem cores muito mais intensas, é quase abstrato, diferente do impressionismo do resto da galeria. Agora eu entendo o que me prendeu por tanto tempo ali: Monet estava quase cego quando pintou aquela ponte japonesa no seu jardim, o mesmo objeto estudado e reproduzido em várias telas ao longo dos anos morando em Giverny. Ao invés dos verdes, azuis e liláses que costumava usar, aquela ponte tem vermelhos fortes, amarelos, marrons e ocres, e azuis esverdeados. Faria muito sentido intuir uma mudança relacionada à catarata que começou a cegar Monet aos poucos a partir de meados da década de 1910, mas talvez não seja uma explicação suficiente porque tantas outras obras da mesma época continuam seguindo as cores e as luminosidades perseguidas obsessivamente por ele.
Monet viu alguma coisa diferente, alguma coisa de particular naquela cena, naqueles dias específicos. Uma vez expressou o desejo de ter nascido cego para poder ter a experiência de enxergar tudo de uma só vez, querendo, imagino, ser arrebatado por uma experiência sensorial que buscou a vida toda. Ele, que era dado a ocasos depressivos, entrava em momentos em que via “tudo escuro”. Como um gênio da cor e da luz é capaz de ver tudo escuro? Meu senso de responsabilidade histórica não permite que eu tente sequer fazer uma análise da psique de um artista que morreu há cem anos. Tudo o que eu posso fazer é reconhecer a existência dessas tentativas desesperadas de capturar impressões e colocar meus olhos para absorver as variedades de visões que me são oferecidas, encontrar a minha visão com a visão materializada de Monet. Ele não queria ensinar outras pessoas, duvidava da própria habilidade com frequência, era inseguro quanto às suas capacidades de registrar as paisagens porque sentia a impermanência profunda do mundo - ainda que isso pudesse angustiá-lo. E tudo isso matizava e formava sua forma de ver. Tenho a impressão de que ele se sentia mais confortável vendo do que sendo visto.
Aquele momento num bar no meio da madrugada me mostrou o tamanho da sedução de ser visto e o perigo de tentar passar a vida procurando novas oportunidades para esse olhar atento e vivo, justamente por ser delicioso. O ver depende unicamente de um esforço e de um interesse internos, extremamente construtivos e recompensadores quando genuínos. Ser visto é um ato passivo que depende do Outro, não pode ser pedido, só pode ser doado. E é de se repensar nossa existência diária em redes sociais nas quais olhamos muito, vemos muito pouco e nos forçamos a ser vistos. Eu percebi o quanto eu gosto de ser visto, quão saboroso é pra alma (ou para o ego), mas não me parece que seja nutritivo; quero dizer, a longo prazo depender desse tipo de insumo causa uma anemia emocional que torna a pessoa míope para ver algo que não seja o próprio vazio no estômago. O ver é tão menos sedutor e exige tanta diligência, mas me preenche mais e tenho a impressão de que permanece por um tempo indeterminadamente longo, finca uma raiz que brota numa planta nutritiva e floresce para lugares inesperados. Acredito agora que é preciso procurar coisas e pessoas para ver e evitar o cinismo causado pelas desilusões sem filtros e sem digestão, não cair numa misantropia e se bloquear do mundo. Talvez um bom remédio para o desespero narcísico seja realmente gastar uma tarde olhando pra uma ponte japonesa.
Da esquerda para a direita: Ninfeias, Ponte Japonesa (1918-1926, Museu de Arte da Filadélfia); A ponte japonesa (1920-22, Museu de Arte Moderna de Nova York); Ponte japonesa em Giverny (1924, Museu Marmottan Monet de Paris)







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