Tristeza não tem fim...
- Vitor Guedes Gonzales
- 23 de jul.
- 3 min de leitura
Topei com um poema da Cristina Peri Rossi, uma escritora uruguaia de quem nunca tinha ouvido falar
As poucas vezes
em que fui feliz
senti um medo profundo
como iria pagar a fatura?
Só os insensatos
- ou os não nascidos -
são felizes sem temor
Aí temos. Uma anti-apologia da felicidade. Desde os Iluministas se fala na busca pela "felicidade". David Hume, o filósofo britânico (1711-1776) ainda olhava esse conceito de um ponto de vista social, coletivo; utilitário que era na sua filosofia em pensar que a maior utilidade das coisas está em proporcionar maior bem-estar ao maior número possível de pessoas. O século XVIII ainda não era o século do indivíduo, o conjunto social era importante, o Antigo Regime dos reis de peruca estava rachando e seria preenchido aos poucos por um novo mundo burguês e que permitia a solidão.
A Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) manifestou o Direito Natural à "busca pela felicidade" [pursuit of Happiness], incluindo no arsenal de novos conceitos a existência de uma felicidade individual, mas - e esse é o pulo do gato -, felicidade completamente vinculada à propriedade privada (inclusive de escravizados, para satisfazer as necessidades e os prazeres necessários ao que talvez hoje nós chamaríamos de "homens de bem").
Entre o século XIX e o século XX a felicidade foi afunilando do conjunto social, para o indivíduo, para o ultra-indivíduo (aquele cuja felicidade é soberana a todas as demais felicidades do mundo). E agora estamos aqui, finalmente com medo da felicidade.
"Ser feliz" se tornou um mantra moderno, uma busca prioritária num mundo de caos e de muitas escolhas. Felicidade foi transformada num produto, num bem pessoal que temos medo de perder ou de roubarem. A gente sabe bem que não se deve andar com o celular dando bobeira na rua com o perigo de alguém passar a mão e acabarmos sem nossa propriedade; por isso, a gente esconde, anda com o "celular do ladrão", faz de tudo pra evitar o assalto. Até que ponto estamos fazendo o mesmo com nossa felicidade-propriedade?
Ou melhor: será que vale a pena tratar a felicidade como bem privado? Como um produto de valor tão imenso que a perspectiva de perder nos faz evitar sair na rua com medo de levá-la junto com nosso celular?
O medo de perder faz a gente não arriscar comprar. Na balança racional que o mundo dos mercados criou não sabemos onde colocar a felicidade, se no prato da dor ou se no prato do prazer. A economia da felicidade está se chocando violentamente com o mundo irracional e inconsciente. O maior medo da poeta uruguaia é o de pagar a fatura. Mas com qual moeda se paga o boleto da felicidade? E se eu me recusar a pagar, vou ficar sem? Será que eu tenho o montante necessário pra faturar?
Mas e se eu começar a me negar a tratar felicidade como produto subordinado à lógica das perdas e dos ganhos, dos lucros e dos prejuízos? E se eu levantar a marreta contra a economia da felicidade? Não me parece que seja possível ser feliz, num estado perpétuo, do momento que toca o despertador até o momento que a luz apaga pra dormir. Existem momentos de felicidade e momentos em que ela vira memória.
Tom Jobim (1927-1994) escreveu nos primeiros versos de "A Felicidade"
Tristeza não tem fim,
felicidade sim
Eu vou discordar dele. As duas coisas terminam em algum momento, viram memórias que permanecem ali, como sentimentos que a gente sempre pode recuperar de alguma forma. Mas na economia da felicidade, tristeza é um produto que temos pressa em nos desfazer - porque comprar ninguém vai; temos pressa em substituir por uma peça de ouro feliz, de preferência com a etiqueta de preço à vista. E existe outro risco gravíssimo em nos submeter à economia dos sentimentos, completamente vinculada à economia dos mercados: pra ganhar, alguém vai ter que perder. Não estou disposto a impor prejuízos para preservar meu patrimônio imaginário. E, aqui entre nós, eu não acho que podemos perder o que não pode ser nosso pra sempre...


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