Pedindo fiado
- Vitor Guedes Gonzales
- 2 de jun.
- 2 min de leitura
O tempo não cura é nada. Se curasse ou ensinasse alguma coisa a gente não estaria repetindo os mesmos erros, se colocando nas mesmas situações, evitando as mesmas dores de um ano, cinco anos, uma década atrás. Mas às vezes é importante botar as coisas na conta do tempo e enquanto isso a gente vai fingindo, vai arrastando, se der coragem vai lidando. E vamos repetindo que o “Tempo cura todas as feridas” e pedindo “tempo ao Tempo”. O Tempo é uma gaveta em que a gente põe as coisas pra apodrecer e vai tentando fingir não sentir o cheiro da decomposição, disfarça com perfume, até ter viço o suficiente pra encarar a faxina.
Quer dizer, o Tempo não é santo, uma hora ele devolve a conta. Daí a desgraça é saber se o bolso já tem dinheiro suficiente pra quitar pelo menos uma parte da dívida. O Tempo é mais agiota do que curandeiro, chega uma hora em que, ou você paga, ou ele vem quebrar suas pernas. E quem procura um agiota senão os desesperados? E não tem homem, mulher, velho, novo, que não bata na porta do prestamista de mão estendida pedindo arrego. E a bem da verdade o Tempo de dentro às vezes precisa parar, mesmo que as engrenagens do relógio de dentro enrosquem em um atrito esporádico com a multidão de engrenagens do lado de fora. Não tem como existirem tantos mecanismos sem alguma fricção, e nisso o Tempo também se desgasta, cria faíscas, enche o chão de limalhas que a gente tem que recolher senão fazem uma sujeira danada.
Eu escolhi fazer da minha vida uma grande observação de coisas no tempo, geralmente coisas que tenham a ver com gente. Mas aprendi logo no comecinho da minha formação que só posso olhar para as consequências das ações e tirar daí conclusões sobre o mundo; o que é bastante confuso porque eu também vivo num presente que só me deixa ver as ações em si, ou seja, as consequências são pedaços inatingíveis de um futuro holográfico. E costuma ser bem difícil acomodar as duas experiências, amarrado num momento entre um futuro incontrolável e um passado acabado e frequentemente incompleto. Consciente do tempo como construção social & etc e desejoso de pedir fiado ao Tempo pra segurar um pouco a barra enquanto minha cabeça está girando. E, por algum motivo, viver entre essa e outras contradições me fazem bem, mantém algum sabor de caos existencial que funciona em mim, que me deixa são diante da inconsistência da vida.
A imagem de capa é a instalação "Over the Continents" (2021) de Chiharu Shiota, artista japonesa residente em Berlim


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