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...Fome...

- Então, me diz: há quanto tempo você tem percebido isso? – perguntou o homem mais velho.

- Deve fazer uns cinco anos, pelo menos. Cinco, seis, mais? Não tenho certeza – disse o mais jovem, as pálpebras pesadas, os olhos sérios fixos em um pequeno ponto de sujeira ao lado dos sapatos do homem mais velho. A memória estava sendo vasculhada à velocidade dos pensamentos, tentando avançar o máximo possível para chegar na marca dos cinco, seis anos atrás.

- E como você sabe? O que te fez ficar atento?

- Meus amigos, familiares, principalmente os que não me veem com frequência. Sempre o mesmo tipo de comentário, quase a mesma frase, palavra por palavra. No começo, o espelho também. Tentei comparar com fotos antigas e comecei a tirar fotos, praticamente todos os dias e comecei a reparar nas mudanças, quer dizer, ao longo do tempo.

A imagem do álbum digital piscou na mente do rapaz, a interface cinza, as miniaturas de imagens, o aplicativo de timelapse, a dúvida derivada disso tudo. O rosto progressivamente mais cavado, os malares medrando, as olheiras mais fundas. Os braços murchando, clavículas aparentes, canela fina, frágil, sustentando mal o peso do corpo.


- E antes? Era tudo normal?

- Acho que sim, eu não consigo te dar uma certeza, porque eu realmente não sei. Eu juro que tô buscando certeza aqui dentro, mas eu não acho ela.

O arquivo era extenso demais e ele mirrado demais pra fazer uma busca eficiente.

- Você sempre foi curvado assim?

- Não, isso não, isso é coisa de pouco tempo, acho que a coluna foi cedendo de pouquinho. Foi de carregar muito peso, também.

- Agora, me fala da tua alimentação. Como tem sido?

- Eu como pouco, bem pouco. Pensando bem acho que quase não como.

- Você conseguiria comer essa maçã, aqui?

Ele tirou uma maçã embrulhada num plástico filme de dentro de uma gaveta e estendeu para aquela figurinha anêmica, que olhou com aqueles dois olhos torvos. Os lábios magros abriram só o suficiente pra passar uma lâmina fina de ar, um soprinho perfeitamente visível naquela caixa esquálida.


- Tudo isso, não! Talvez eu consiga um pedacinho da casca.

O homem mais velho devolveu a fruta pra gaveta e cobriu a boca com a mão, escolhendo os próximos testes. Enfiou uma mão na gaveta e tirou uma migalha, uma casquinha mínima de um pão seco de sanduíche meio que esquecido, meio que negligenciado.


- E isso?

- Ah, sim, agora sim, é isso que eu como!

- Quantas vezes por dia?

- Por dia?

- Não é todo dia que você come?

Ele tentou coçar a cabeça. Seria duríssimo para qualquer um olhar aquela tragédia abandonando o movimento antes de começar, enfraquecido demais pra se confortar.


- Não. Se alguém me dá eu como, senão eu fico sem comer mesmo, mas nem é nada demais, não. Uma hora o estômago acostuma...

- E quando alguém te entrega isso aqui, o que você faz?

- Eu fico muito feliz por alguém ter desviado da vida pra me alimentar.

O homem mais velho deixou o braço no ar por um tempo, vendo aquela casca de homem olhando para a migalha com a esperança quase visível embaixo daquelas costelas aparentes, como se toda a vida que restava naquele corpo impossível estivesse se apegando na expectativa de sobrevivência simbolizada por aquela partícula de pão. Com toda a sua experiência, aquele homem mais velho não conseguia explicar como subsistia sem pão e sem carne, como aquele fantasma podia estar ali na sua frente com tanta fome olhando praquela migalha. Foram os olhos. Aqueles olhos pesados que o fez entender a resposta daquele enigma improvável. A resposta era mais triste do que ele esperava, do que ele desejava que fosse...


Não existia no mundo inteiro um remédio para aquela condição; não havia soro, suplemento, alimento líquido, sólido ou pastoso para recuperar aquele mofino. Não, tudo que ele ansiava era por aquela casquinha miserável e triste. Qualquer outra coisa lhe faria mal porque seu estômago não tinha a menor condição de aceitar mais do que aquilo sem uma explosão calórica que consumiria aquela casca de gente.

O homem levantou e colocou a migalha dentro da boca do paciente, com a gentileza triste de um carrasco consciente do seu trabalho. Os olhos cederam ao peso e se fecharam, mastigando a hóstia da sua comunhão com um esforço proporcional ao seu prazer. Pisando devagar para trás - mesmo que nem um batalhão pudesse perturbar aquele momento -, o homem sentou de volta na cadeira e escreveu na ficha à sua mesa:

O paciente foi alimentado com uma migalha e apresentou satisfação imediata.

É um sujeito já condenado. Ele está condenado a viver.

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1 Comment


Julia Milanezi
Julia Milanezi
Oct 21, 2023

Que texto... ❤️

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