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Ele sempre sabia que a última despedida ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Ele sabia muito bem, por mais que tentasse esconder esse conhecimento em todas as frestas possíveis, que o último navio ia zarpar quando a maré subisse. Aquela era sua ilha e só restavam os dois, ele e ela, mas aquela era uma ilha de passagem, destinada a ser um porto seguro por algumas marés; e cada embarcação seguiria até seus próprios portos, deixando aquela ilha na memória.
Mas o tempo da última maré estava chegando e cada vez ficava mais difícil fingir que ele não sabia o que ia acontecer. Parado, com os dois pés enfiados na areia, sentindo milhares de grãos quentes raspando uns nos outros, raspando na sua pele quando ele mexia os dedos. Ele estava nervoso, claro, e toda aquela areia já tinha sido pedra algum dia, mas o mundo não deixa as coisas paradas por muito tempo. Os olhos ardiam pelo esforço de não deixar nada sair deles enquanto encaravam as ondas que quebravam cada vez mais perto. Quem olhasse de longe no mar podia achar que alguém tinha colocado uma estátua de pedra na beira da água; que ideia engraçada que ele fosse feito de pedra, logo ele, todo carne e sangue.
Nos últimos tempo, a ilha recebia alguns poucos visitantes passageiros, apressados, ansiosos com suas próprias vidas e desejos, mas ele não podia julgar as necessidades das pessoas em viver suas vidas e nem esperar que alguém levantasse uma casa permanente numa ilha que era uma ilha de passagem. As pessoas que passavam temporadas saíam dali com novos propósitos, descansados, reconstruídos, sentindo só nas franjas opacas da consciência que sua presença ali terminaria com a subida da próxima maré e o barulho da buzina metálica do navio. Mas, para ele, essa consciência era cada vez menos opaca; a cada temporada ficava mais transparente, mais concreta, e a cada temporada seu coração resignava suspirado, seus olhos se encharcavam de resiliência e o tempo foi abrindo lentamente essa cortina, lançando luz no que ele sempre soube que havia do outro lado, mas cujas sombras davam a esperança de não existirem.
Aquela temporada estava acabando, os dois sabiam, e a resignação resiliente ou a resiliência resignada dele - não dava pra identificar qual alimentava qual - sabia que devia aceitar, tal era a razão da existência da sua ilha, a ilha que foi feita para não ser o destino final de ninguém, a não ser o dele. A dor estava costurada na história daquele coração porque nunca pode haver partida sem dor. Algumas vezes ele tentou abandonar a dor em alguns dos cantos mais escuros da ilha, mas ela sempre aparecia do lado da cama, na porta de casa, dentro da geladeira, pendurada num abajur. Há muito ele tinha aceitado aquela companhia indigesta até ambos se acostumarem um com o outro e ela também ter de partir, deixando sombras que às vezes ele conseguia captar atrás de uma árvore, no voo de um sabiá, numa pedra rolando e levantando poeira. Essas miragens sempre construíam um sorriso triste que se espalhava pra todos os vincos, cada vez mais numerosos, do seu rosto. Um sorriso que tinha forma de uma canção que é um abraço de calor, mas que sorrateiramente encolhe um coração. E sua resiliência resignada aceitava aquele sorriso porque aprendeu que desmanchar à força era tortura.
A maré estava quase encostando nas suas canelas, ele sentia a umidade misturando o espaço com a areia e uns pingos salgados pulando e descansando nos pelos das suas pernas, pendurados e refletindo uma luz minúscula. Ele aproveitou aquela companhia pelo tempo que foi possível, mas agora a água invadia os buracos cavados pelos seus pés e surpreendeu o seu corpo quente com aquela sensação gelada e inevitável. Ele olhou para baixo, para o rodamoinho de brancos e azuis e beges, e ouviu a buzina metálica cortando o céu como uma faca serrando um pedaço de alumínio e despertando a ilha. Ele levantou a cabeça muito devagar, e ele queria poder estender aquele momento e ficar preso eternamente naquele movimento, até que tomou consciência da embarcação se aproximando. Os cantos da sua boca começaram a se curvar e ele percebeu a aproximação da sua resignação resiliente trazendo a dor pela mão como uma criança que precisa de cuidados, porque aquela era uma ilha de passagens.
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