Existe um grande perigo na idealização do passado. Conceber um mundo no qual o que veio antes é sempre, e vai ser sempre, melhor do que veio e virá depois, é negar pra sempre qualquer possibilidade de um futuro otimista que seja; idealizar o passado é negar a possibilidade de que a transformação possa ser positiva de alguma forma. Idealizar o passado é estar de braço dado com o reacionarismo, aquele que tenta, no presente, não morrer afogado abraçado no passado como uma boia salva-vidas.
Idealizar o futuro é igualmente perigoso; é a eterna promessa do devir. Regozijem-se, irmãos, pois o arrebatamento está próximo e o paraíso terrestre nos aguarda. Idealizar o futuro é negar qualquer validade de passado, é descartar o anterior com a fantasia (positivista) de que o depois é sempre melhor do que o antes, sempre.
Idealizar o presente não é novidade nenhuma. Voltaire já escreveu sobre isso. Não vou escrever melhor do que Voltaire. Idealizar o presente é, de certa forma, parodiar o Dr. Pangloss, professor do conto do Voltaire, Cândido ou, o Otimismo, que argumentava, com a sua bagagem filosófica, que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Mesmo em todas as desgraças, cataclismas, infelicidades, destruições e filhas-das-putagens em geral, esse é o melhor de todos os mundos possíveis, dizia o Dr. Pangloss.
Se eu tentei esconder, escondi muito mal a crítica desse texto. É bem possível que eu tenha querido me referir aqui à “idealização” como a valorização de alguma coisa ideal em prejuízo de alguma coisa que seja possível, concreta, alcançável, inteligível (eu não vou usar a palavra “real”, não vou criar essa dor de cabeça para mim mesmo). Idealização não é mentira e não é buscar o que não existe. Mas idealização pode ser desejar que as coisas existam exatamente da forma como a gente quer que elas existam. Essa definição é importante porque a gente pode falar em “idealizar” um projeto, ou “idealizar” uma peça de teatro, ou seja, buscar tornar uma ideia concreta. E a gente também pode falar em “idealizar” uma pessoa, não no sentido de tornar uma pessoa concreta, mas no sentido de ver aquela pessoa como uma coisa que só existe no mundo das ideias e que não corresponde a como ela pensa, se comporta e se exprime fora do mundo das ideias.
Idealizar os acontecimentos passados, a existência presente ou a preexistência futura é crime? Não. A gente faz o tempo todo? Sim. Então estamos em perigo de quê, exatamente? Acredito que estamos em perigo de perder o que é possível e do que está realmente ao nosso alcance. Algumas pessoas, com certeza, podem dizer que “perigo” é um exagero, mas quando a gente ouve um sujeito celebrar um torturador na tribuna da Câmara dos Deputados e depois elege esse mesmo sujeito para presidente, temos que viver à beira de um golpe de Estado. Eu classificaria isso como “perigo”.
A idealização desse passado, presente e futuro passa pelos filtros das ideologias e das visões de mundo: o mundo presente corre riscos gigantescos, o perigo é a subversão dos valores da família, do cristianismo, do ocidente. Esses perigos não existem fora do mundo mental dessas pessoas, mas o medo dessa quimera fantástica joga elas direto nos braços reacionários desses idealizadores de passado. Na ditadura tudo era mais seguro, as famílias estavam protegidas, o exército protegia a amada nação contra esses saqueadores de valores, a economia passava por um milagre excepcional, logo, abraçar esses sujeitos e as suas idealizações de passado parecem uma escolha muito segura diante da insegurança monumental do mundo de crises econômicas desastrosas (que nunca podem ser causadas pelo sistema econômico que vivemos há centenas de anos), mudanças ambientais cada vez mais catastróficas (que nunca podem ser causadas pelo sistema econômico que vivemos há centenas de anos) e desmoronamento do Estado-nacional (que nunca podem ser causadas... vocês entenderam, já, é o capitalismo).
Abdicar da idealização, por outro lado, é dificílimo e doloroso, cria uma certa dissonância cognitiva. Aqui alguém poderia me falar sobre a “alegoria da caverna” de Platão, mas, além desse exercício filosófico ter sido usado pra justificar todo tipo de bobagem de auto-ajuda, existe uma ideia de Verdade (com V maiúsculo; universal, homogênea e única) que não cabe muito no nosso mundo; e a gente ainda corre o risco de idealizar esse passado grego antigo, pensando que a Verdade estava lá atrás e agora está perdida para nós, pobres descendentes dos grandes gregos.
Seria uma irresponsabilidade e arrogância da minha parte exigir que todos desnudem suas idealizações - eu mesmo tendo tantas idealizações e sabendo que elas são, muitas vezes, importantes pra nossa sobrevivência mental -, mas eu poderia arriscar um convite, sem parecer muito pedante. Primeiro, antes de tudo, procuremos nossas idealizações sem exigências de destruições e de abandonos, como num daqueles documentários da vida animal, observando de longe, procurando um contato, tentando entender os padrões de comportamento, registrando os seus movimentos. E, algum dia, podemos libertar esse animal selvagem, conscientes da sua forma e do seu potencial dentro da nossa natureza interna.
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