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A morte de Heráclito

Ele começou a olhar para as suas mãos com um interesse que nunca teve antes. Cada linha, cada poro atraía os seus olhos. Aquilo era uma veia pulsando? Ou foi um espasmo de um músculo cujo nome ele não conhecia? Engraçado, tinha um corte no dedo indicador da mão esquerda que não era que nem as outras linhas porque ele conseguia ver reflexos de vermelho, como aqueles fiapos de linha que às vezes saem da costura da blusa. Ele mexeu as mãos; com a esquerda ele passou três dedos pela testa e pela sobrancelha; com a direita ele fechou quase um punho, mas um punho solto, leve. Apoiando as duas mãos na testa ele percebeu que existia um limite para o quão interessantes as mãos podiam ser. Um interesse tão obviamente artificial. Como quem finge que não vê a pessoa nua atrás do voile. Não vê porque sabe que viu.


Ele mesmo estava nu e nem tentava usar as mãos interessantes pra se tapar porque seria reconhecer que estava nu. A aragem passava pelo corpo e ele sentia sem sentir pequenos maços de ar se prendendo nos seus pelos por um tempo minúsculo, quase sem tempo, sem força pra ficar enroscado. Se não fossem ares diferentes ele poderia ficar interessado por algum tempo, mas eram iguaizinhos às águas do rio grego de Heráclito.

E ele curvou a coluna e virou a cabeça pra esquerda, apertando os olhos e as sobrancelhas, embicando a boca; foi pego. Foi o Heráclito que traiu ele. Tentou tornar as suas reflexões mais importantes, mais interessantes, fugir da própria nudez. Heráclito levou ele longe demais. É importante dizer que durante todo esse tempo atemporal os dois olhos fugiam pra esquerda, dois coelhos pulando, e voltavam a olhar pra frente. Dois coelhos ida e volta, muito difícil agarrar um coelho quando ele pula. Quando os dois olhos voltavam a olhar pra frente, ainda meio perdidos, meio vagando sem direção, era o medo que abria eles mais do que o comum, o suficiente pra deixar entrar ou deixar sair uma pulsão elétrica que conseguia navegar todo o seu corpo - que estava nu - mais rápido do que um coelho pula.

Foram necessários três parágrafos de vergonha da própria nudez pra ele perceber que sabia o que estava ali, a pessoa nua atrás do voile. Não havia pessoa e não havia voile. Só uma pessoa e um voile imaginários; imaginários mas sólidos o suficiente pra evitar o que sempre estava ali.

O Vazio

Ele queria ter dinheiro pra contratar um circo. A essa altura ele já sabia, é claro, que nem todos os mágicos e malabaristas iam conseguir fazer ele fingir que o Vazio não existia. Já fazia tanto tempo que ele sabia que estava preso entre a cruz e a espada, entre o tudo e o nada. Mas o tudo sempre apontava pro nada e quando uma espada quebrava ele tinha de buscar outra; que fosse uma espada, uma faca, um machado, um cutelo, um alfinete, não fazia diferença. E ele passou a fazer uma coleção de imagens, de metáforas, de alegorias, de palavras, sinônimos. Sílabas que iam se empilhando.


Os dois olhos viraram mais uma vez pra esquerda. Mas não voltaram. Ficaram ali. Pelo tempo necessário. E ele olhou pra baixo e estava nu. Os músculos todos endureceram mas a farsa tinha acabado. Ele olhou nos olhos da górgona. Não. Ele já tinha decidido abandonar as metáforas. Ele estava nu. Não havia górgona, só ele nu e o Vazio. A cabeça conseguiu acompanhar os olhos em alguns graus pra esquerda e a respiração foi ficando mais intensa, mais pesada, mais dolorosa porque ele sabia pra onde tinha que virar. Virou mais, suava. As suas pernas se contraíam, espasmos de desconhecido. Cada dedo da sua mão desinteressante tinha uma vida, um desejo de movimento que não comunicava com os demais colegas. Nunca suas costas estiveram tão vergadas. Talvez algum covarde que passasse se perguntasse que animal moribundo era aquele, todo espasmo e angústia.


Animal. Era isso que ele precisava. Se virou de uma vez, gritando. E o seu grito era de animal, um grito de loucura, um grito que rebentava as cordas de dentro, um grito, um berro, um grito, um grito imenso, que ia destruir a terra, destruir o vento, matar Heráclito, matar a górgona, matar o homem.

E olhou pro Vazio. E não entendeu o Vazio.


Estava vivo, era nu e olhava pro Vazio sem entender o que ele estava vendo. Tanto tempo vivido tentando entender o anti-Vazio. Ele não entendeu o Vazio. O medo existia dentro e fora do Vazio. Ele não sabia se alguma coisa podia sair do Vazio ou se ele podia levar alguma coisa pra dentro do Vazio. Aquilo não era desesperador, não era monstruoso, não era completamente doloroso. Só era diferente de tudo que ele imaginava - ou que tentava não imaginar usando uma roupa invisível. Ele não sabia nem o que ele estava vendo. Nenhuma das suas metáforas servia pra descrever aquilo. Ele sentou. O corpo estava dolorido, as pernas eram fortes, mas o peso da volta chupou toda a força daquele corpo. E não era uma carcaça. Era um corpo. Ele sentiu que estava tudo muito bem sentar, um desconforto a menos.


Não era seguro olhar por muito tempo pra dentro do Vazio diretamente, ele sentiu aquilo. Aquilo era formidável como é um eclipse, um terremoto, um planeta, era maior do que a vida e se encaixava nela como um anel de noivado se encaixa no veludo dentro da caixinha. Era bonito como a morte. E feio como a morte. Era um colo quente, macio, um carinho na cabeça. Era uma facada aguda no pulmão. Era todas as contradições do mundo e todas as convergências. Era tudo isso, mas também não era nada disso. Era.

Ele tinha uma coisa nova pra ele. Nova e infinita como o anti-Vazio. Passou muito tempo até que ele pode dar um meio sorriso, não estava feliz, estava reconhecendo um deconhecido que era conhecido. Ele conseguiu falar antes de ficar em silêncio por muitas eras: “eu vou odiar isso aqui; eu vou amar isso aqui”. Cruzou as mãos embaixo do queixo, apoiou a cabeça e olhou para o Vazio.

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2件のコメント


Julia Milanezi
Julia Milanezi
2023年5月03日


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Vitor Guedes Gonzales
Vitor Guedes Gonzales
2023年5月04日
返信先

Obrigado, obrigado! ~se curva para a plateia

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