Graças a deus era sábado, senão ela teria perdido irremediavelmente a hora. Colocou a água pra ferver e começou a procurar pela cozinha. Abriu os armários primeiro, mas ela não teria deixado junto dos copos, nem dos pratos. Só por desencargo abriu as gavetas - de repente era um lapso grave. Mas não estava embaixo dos garfos, não tinha nada nas colheres, nem na concha, que era um bom lugar pra perder alguma coisa. A água estava fervendo quando ela olhou embaixo dos panos de prato (podia ter ficado enroscado numa linha enquanto ela cozinhava, mas não). Colocou o pó do café no filtro com uma falta de concentração que ela se arrependeria dali a pouco, tomando um café fraco e limpando o pó que fugiu da sua colher de medida, porque ficou olhando em volta, pra janela, para os puxadores, pensando onde ela podia ter enfiado.
Perder coisas a deixava com uma coceira num lugar que ela não alcançava; tentou passar a unha na dobra interna do braço, mas não deu a satisfação que ela estava buscando. Passou a manhã inteira nesse jogo: revirando gavetas - Preciso arrumar essas gavetas depois -, enfiando a mão embaixo das almofadas do sofá, levantando cadeiras, olhando no meio de revistas, de livros, de pilhas de papeis. Ela sabia que era improvável estar no meio de uma revista, mas nesse momentos a cabeça não se importa muito com a lógica do senso comum. Procurando num vaso de planta - Nossa, eu preciso regar essas plantas - ela tentou esfregar um rastelinho na sola do pé, mas a desgraça da coceira não aliviava. Ela não achava o eixo dessa coceira. Não estava no meio das folhas da samambaia, nem na costela-de-adão. Podia ter caído embaixo das violetas, mas já estava tomando uma consciência envergonhada de que não tinha perdido no meio das plantas; não tinha porque estar pendurado numa comigo-ninguém-pode.
Desceu até a garagem, era lugar mais sensato pra procurar do que na meia dúzia de verdes do apartamento. Não deu tempo de terminar de se censurar por procurar nos vasos e teve que voltar pra pegar a chave do carro que tinha ficado pendurada com a chave de casa - Aliás, preciso tirar uma cópia dessa chave pra deixar com a minha mãe. Aproveitou as duas viagens imprevistas para olhar pela cabine do elevador; na hora de tirar a chave da bolsa podia ter deixado cair. A bolsa. Quando eu subir preciso olhar na bolsa.
Abriu todas as portas do carro, olhou embaixo dos bancos, em cima dos bancos, dos lados dos bancos, dentro dos bancos, mas não estava em nenhum dos bancos. Não estava embaixo de nenhum dos tapetes, nem no porta-malas. As sacolas de compra! Olhou em volta do carro, embaixo dos carros dos vizinhos; bem podia ter escorregado pra baixo de um deles. Acabou tomando o elevador de volta e foi direto na bolsa, tirando carteira, nota fiscal, remédio, absorvente, um desodorante pequeno - Tá vazio, já vou jogar fora -, a bolsinha de maquiagem, uma caneta sem tampa, três presilhas - Gente, eu nem uso mais franja. Não estava na bolsa. Foi nas sacolas de compra, podia ter ficado embolado no meio daquele monte de plástico vagabundo. Cada crocante agudo era uma sirene da sua frustração.
Parou no meio da sala, uma mão no quadril, uma mão segurando o rosto; o retrato da incredulidade e indignação - Eu nunca perco nada, meu deus. Fez toda uma retrospectiva do dia anterior, buscando detalhes obsessivos da sua rotina, desconcertada por um evento que para ela era como um eclipse. Revirou o quarto, tirou os lençois da cama - É bom porque já coloco pra lavar -, levantou o colchão, enfiou a mão em todos os bolsos das suas roupas - Olha, uma nota de 10 -, afastou os criados-mudos e encontrou um lápis sem ponta, com o qual conseguiu alcançar o meio das costas pra tentar destruir aquela angústia sensorial.
Voltou pra cozinha olhando para o chão, caçando aquele animal em extinção, querendo abater aquele mico-leão-dourando na cacetada. Pegou de volta a caneca de café e sentou na mesa com sangue nos olhos. Provavelmente foi o café, frio e fraco, que fez ela lembrar. Foi aquela aberração sem vida e sem gosto nenhum que a fez perceber que ela não fazia a menor ideia do que estava procurando. Pousou a xícara em cima da mesa sem vexame. Deu uma respirada funda que matou aquele comichão. Eu vou fazer outro café...
❤️❤️❤️❤️❤️