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João e a Pinha

O dia estava claro, até dentro da floresta. Por isso João conseguiu ver a migalha de pão no meio da trilha. Aquele pedacinho de pão o lembrou de quando era pequeno. Sabia o que era aquilo. Agachou e olhou bem de perto.


É realmente uma migalha que alguém deixou - pensou João, intrigado. Há muito que não moravam mais bruxas naquela floresta. Olhou em volta desconfiado, ressabiado de alguém pular de trás de um tronco de árvore gritando. Mas, não. Ouvia o vento, os galhos estalando, algum esquilo ou coelho pulando, mas todos esses sons eram bem familiares. Nada de novo. Só aquela migalha esquisita bem colocada no meio da trilha.

João tinha que seguir seu caminho, mas aquela migalha ficou fixa na sua imaginação. Ele sabia o que ele ia fazer no dia seguinte, mas resolveu não contar a si próprio. Continuou juntando galhos, checando as armadilhas, pegando água do poço, alimentando o fogo e deitou quando a noite caiu e o tempo esfriou. Quando acordou de manhã, abriu a porta da casa pra se aliviar do lado de fora e pisou num pedacinho de pão que tinha sido colocado na soleira. Ele reagiu como se tivesse pisado numa borboleta, como uma criaturinha que destruir causa um arrependimento opressivo. Quase chorou por ter achatado aquele pedacinho de massa.


Tirou com delicadeza aquela migalha pra não desmanchar mais o naquinho de pão. Olhou em volta da casa e não via nada de diferente; se alguém deixou aquele pedacinho ali não deixou nenhum rasto. Se alguém tinha pisado naquela grama até a porta teve o trabalho de deixar bem claro que o pedaço de pão era toda a evidência disposta pra imaginação. As mãos de João estavam frias, segurando o mistério, o corpo todo teso. O medo não era o medo de malfazência, de perversidade, de afronta. Era muito pior, porque pra toda besta ele tinha uma arma diferente pra abater. Em fantasma não acreditava - preferia até acreditar. Aquilo não era coisa de fada, de gnomo, de duende. Aquilo era coisa de gente.

Quando se mexeu, preferia não ter se mexido. Estava exposto. Presa fácil que nenhuma parede podia defender. Perto do cocho ele viu outro pedacinho, a casquinha quase brilhando. Depois outro equilibrado num canteirinho de narcisos. Depois outro no centro de um toco de uma árvore derrubada por ele há meses. Depois outro na cabeça de um prego enferrujado de uma cerca. Depois outro na soleira de uma porta trancada.


A porta não abria. Nem puxando, nem empurrando. Era inconcebível arrombar aquela porta, intolerável a ideia de forçar a entrada em uma morada para o qual ele foi atraído mas não convidado. João sentou numa banqueta baixa, ainda descalço, despido de tudo, menos da roupa, cada migalha aconchegada na palma da sua mão. Quando o sol bateu no cocuruto percebeu o medo de que o suor maculasse aquela coleção e recolheu uma pinha pra encaixar cada pedacinho de tesouro com segurança.


Quando o vento parava de correr pelos galhos ele ouvia às suas costas os barulhos de um caneco sendo colocado na mesa, um galho estourando embaixo do fogão, uma passo desapercebido, uma respiração mais funda...


João viu o sol escorrendo por trás das árvores, até ser engolido pela floresta. A luz do mundo foi apagada e a luz de uma única vela foi acesa, escondida. Ele tinha uma impressão curiosa de quase sentir a cosquinha do calor da chama nos pelos da nuca. Mas a ilusão não era cobertor que protegesse do frio da noite. Desprotegido, ele obedeceu a ordem do corpo, acatou o comando dos braços nus e do rosto gelado, levantou da sua vigília dolorida, entravada, o corpo encolhido e encurtado, os olhos desadormecidos, a língua desprendendo, áspera e seca, ganhando um pouco de vida indecisa. Colocou a pinha na banqueta como fosse um sabiazinho filhote com o corpinho de papel-bíblia. Indefinidamente depois ele percebeu que nunca tinha tirado os olhos daquela arvorezinha cheia de migalhas embrechadas, nunca tinha olhado pra cima nem para os lados.


No primeiro dia ele procurou as migalhas embaixo das pedras, no meio dos cogumelos, no bico de um maracanã. No segundo dia, deixou uma migalha boiando na poça. No terceiro, ele pegou a casquinha do chão, protegeu ela numa fresta de uma cabreúva, sorriu na trilha e seguiu catando amoras pela mata.

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1 Comment


Julia Milanezi
Julia Milanezi
Jul 16, 2023

❤️

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