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O náufrago

Atualizado: 14 de set. de 2023

Quando retomou a consciência, o rapaz estava atravessado numa boia colorida, flutuando à deriva, vítima de um naufrágio que ele não lembrava estar. Abriu os olhos devagar, as duas pálpebras raspando, secas, pesadíssimas. Foi assimilando letargicamente a sua posição de náufrago, evitando mexer, mesmo que involuntariamente, qualquer um dos seus membros. Só corria os olhos pelos arredores, tentando reconhecer algum ponto fixo que pudesse se agarrar quando decidisse lutar pela sua sobrevivência. Nada. Da posição inerte em que estava não via nenhuma praia, nenhum porto pra traçar uma rota segura. Ele teria de nadar, sem dúvida nenhuma.


Nenhum dos braços e nenhuma das pernas respondia e, secretamente, ele estava aliviado por estar ali jogado na boia como um marionete descartado. A desgraça era não lembrar de nada antes da boia, que subia e descia no movimento das ondas, o único movimento que ele era obrigado a fazer, sem oferecer resistência nenhuma. O mais incômodo nem era o calor na nuca, a ardência da pele exposta, envermelhecendo; nem a fome que queimava por dentro o que o sol queimava por fora. Era a absoluta inércia. Ele era prisioneiro da própria imobilidade. Bater os braços ia lhe doer de uma forma que ficar cozinhando não doía.


Para evitar pensar nesse dilema, tentou lembrar do acidente e sentiu como um choque elétrico atravessando seu peito. Era mais uma dor que ele colecionava nos poucos minutos de consciência.


Eu vou montar um museu de dores.


Ele sabia o que tinha acontecido, mas tentar reviver os momentos anteriores ao apagar das luzes não ia tirar ele dali. Revirar esses pedaços de memória não iam ajudá-lo a sobreviver e ele tinha uma clareza de que se se agarrasse a eles nunca mais conseguiria se mexer, seriam um lastro sem volta. Não, não. O caminho teria que ser outro, talvez tão doloroso quanto esse, mas com uma saída no final de um túnel longuíssimo.


Aquela água passava curiosa embaixo dele, de forma infinita, refletindo o universo e absorvendo tudo que lhe ofereciam. Ele tinha coisas tristes para oferecer e mesmo assim aquele corpo imenso ia puxando e dissolvendo os calos duros do seu corpo. Quando virou o pescoço pra olhar para a praia se surpreendeu com a própria coragem inconsequente e sorriu escondido, orgulhoso da força dos seus músculos. Às vezes a água trazia um pedaço de ferro que boiava ali perto, chapas coloridas, plásticos recortados, madeira de deriva. Se, no começo, odiava a água, agora sabia que ela não tinha culpa de carregar o que despejam nela. A água não tem consciência, não tem objetivo, ela só corre e existe e carrega pessoas, e destroços, e navios, e muitas cores, e sal, e terra. Ela carregou ele, evitou tumultuar demais sua superfície.


Era bem agradável, agora, o calor que fazia enquanto ele estava sentado na areia olhando para o mar. Quando conseguiu perceber onde estava não ficou particularmente surpreso, mas aliviado, consciente de que tinha nadado com dificuldade pra se salvar. Não lembrava do momento que decidiu pular da boia, mas se sentiu mais forte olhando para o mar imenso, aceitado uma lógica que nem ele podia recusar: se eu estou aqui é porque em algum momento eu decidi nadar. E decidiu não fugir do mar, nem esquecer da rigidez nas suas articulações todas, nem da boia e nem do naufrágio. O naufrágio era fantasmagórico. Olhando para o mar, a ideia do naufrágio era assustadora, desejava nunca mais estar em um naufrágio, jamais. Mas, se estivesse, ele sabia nadar.

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1 Comment


Julia Milanezi
Julia Milanezi
Sep 11, 2023

❤️❤️❤️❤️

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