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O saque da cartilha

  • Foto do escritor: Vitor Guedes Gonzales
    Vitor Guedes Gonzales
  • 27 de mar.
  • 3 min de leitura

Sujeitos de direita precisam se vitimizar dizendo que são alvos de perseguições e cerceamentos ideológicos. Ajuda muito defender em voz pública a “democracia”. Coloco essa “democracia” entre aspas porque é a ideia formal que convém a qualquer político defender, mesmo que esses políticos sejam adeptos a ideias fascistas, que, ainda assim, precisam repetir essa palavra incansavelmente para esconder todas as raízes autoritárias e ditatoriais que crescem nos peitos medalhados e engravatados. Não pega bem assumir em voz alta que a democracia atrapalha regimes autoritários, ou revelar o desejo absoluto de liberdade para poder vigiar, perseguir e ofender dissidentes. Como pode ser possível ser perseguido num sistema político e econômico que privilegia em tudo os adeptos do neoliberalismo? Ser de direita é a coisa mais fácil e mais prática nessas sociedades chamadas de “ocidentais”. Nunca ouvi relatos de pessoas sendo demitidas dos seus empregos por serem de direita, mas canso de descobrir histórias de pessoas que foram perseguidas, aporrinhadas até a demissão, atacadas por seus próprios familiares por serem pessoas de esquerda. Porque ser de esquerda é difícil, dá um trabalho monumental.


Repetir que a dicotomia esquerda-direita não faz mais sentido não vai fazê-la desaparecer porque, por enquanto, é a única coisa que faz sentido nos nossos sistemas políticos modernos. É possível ser de uma esquerda moderada, de uma direita moderada, de uma extrema-direita ou extrema-esquerda, ou até não ter muita certeza do que se é, não saber exatamente onde estão suas crenças ou se suas crenças são realmente suas ou se foram simplesmente herdadas de gerações anteriores ou do seu meio sócio-econômico. A Guerra Fria durou muito tempo e cristalizou tanto essa dicotomia quanto a validade da perseguição às esquerdas, ainda mais no Brasil que viveu esse acossamento de forma tão inflexível e ditatorial. Para ser de esquerda é preciso se assumir de esquerda, de resto, segue o fluxo. E, por isso, o que a direita faz é usurpar um discurso que é tradicionalmente da marginalidade, de pessoas que são perseguidas e lesadas por serem quem são ou acreditarem no que acreditam. “Eu sou perseguido político” foi afanado por essas pessoas porque é um discurso legítimo de pessoas que, nesse país, foram realmente perseguidos por discordarem de uma ditadura empresarial, civil e militar, que nunca aceitou a discordância razoável, matéria-prima de uma democracia legítima.


Falar de resistência só é possível quando uma pessoa ou um grupo está inserido num contexto que lhe é amplamente desfavorável, como uma ditadura que persegue seus opositores, como num sistema que pune os considerados desviantes, que persegue seus professores justificando o assédio pelo esquerdismo que intoxica as escolas brasileiras, mas que permite e incentiva que professores de direita sejam considerados isentos por definição. Desviantes, por seu pensamento, são doutrinadores. Um dos motivos da perseguição de feiticeiras mulheres na Europa e nas Américas, nos séculos XV, XVI e XVII, foi a crença inabalável dos inquisidores de que mulheres de comportamentos desviantes recrutavam outras mulheres para desviá-las do caminho que naturalmente se esperava de mulheres. Gays querem filiar jovens heterossexuais ao seu clube de sodomias e pedofilia. Negros querem substituir os brancos, fazendo uma guerra no país tão cordial da democracia racial.


E, na ponta dessa lógica, os perseguidos se tornam os perseguidores, os intolerantes, os incapazes de aceitar outros pensamentos que não o dominante, os eivados de ódio de classe e de raça e de gênero. A esquerda quer acabar com a família, eu tenho família, logo, a esquerda está me perseguindo. É um silogismo básico, mas extraordinariamente superficial e falso na sua essência. Mas é um mecanismo retórico acolhido e sancionado porque os alvos desse discurso já não são bem aceitos. E tomar os discursos historicamente construídos, roubá-los das suas origens e extirpá-los dos motivos da sua criação não causa grande abalo, inclusive fica até mais aceito na boca de quem saqueia, fica mais justificável, mais higienizado, mais homogêneo. Quando finalmente confrontados com as consequências dos seus atos, os perseguidores históricos só conseguem afanar o discurso dos perseguidos históricos. É o que resta.



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