Rohan, a Terra dos Cavaleiros, aparece em O Senhor dos Aneis, de J.R.R. Tolkien, como uma terra de um povo simples, rústico, mas corajoso, honrado e nobre à sua própria maneira, construido por Tolkien fazendo contraste com os homens do reino vizinho de Gondor, herdeiro de tradições antiquíssimas que remontam às primeiras Eras do mundo. A história do reino de Rohan aparece n’O Senhor dos Aneis de forma muito discreta e com objetivo de apresentar um contexto para as ações dos personagens e para as movimentações políticas e batalhas entre as forças dos homens e da maior ameaça à sobrevivência dos mortais, Sauron, o Senhor dos Aneis, o Senhor do Escuro. Quando Théoden, rei de Rohan no tempo em que as histórias acontecem, evoca o nome do seu ancestral, Eorl, o Jovem, não é preciso que leitor tenha, necessariamente, o conhecimento de quem foi Eorl ou a história e a importância dos seus feitos; a própria conjuração desse personagem heroico evoca o discurso de uma ancestralidade hereditária, uma busca à história e à memória dos seus reis antepassados como forma de honrar a memória do fundador do seu reino. Essa invocação não é estranha à própria história europeia durante o período medieval, quando a invocação de uma casa real ancestral - seja ela real, imaginária ou uma mistura das duas coisas - servia como mecanismo que dava legitimidade a um reinado que se desejava manter.
Por volta de 731, o monge Beda, o Venerável, um sábio anglo-saxão, terminou de escrever um dos documentos mais importantes da história anglo-saxã, a História Eclesiástica do Povo Inglês (Historia ecclesiastica gentis Anglorum), um panorama da história da Igreja Católica no que hoje é a Inglaterra. No capítulo V do Livro II, Beda apresentou a seguinte genealogia do rei Etelberto, rei de Kent, um dos reinos anglo-saxões do século VII:
No ano do nosso Senhor, 616, o vigésimo primeiro depois que Agostinho [de Cantebury] e sua companhia foram enviados para pregar à nação inglesa, Ethelbert, rei de Kent, tendo governado mui gloriosamente seu reino temporal por 56 anos, entrou para os prazeres eternos do rei dos Céus. Ele foi o terceiro dos reis ingleses que governou sobre todas as províncias meridionais divididas dos nortistas pelo rio Humber e pelas bordas contíguas a ele; mas o primeiro de todos a ascender ao reino celeste [ou seja, o primeiro rei convertido ao cristianismo].
Esse Ethelbert era o filho de Irminric, cujo pai era Octa, cujo pai era Oeric, cujo sobrenome era Oisc, a partir do qual os reis de Kent são chamados de Oiscings. Seu pai era Hengist, quem, convidado por Vortigern [chefe guerreiro e, talvez, rei dos bretões do século V], com seu filho Oisc, como foi dito acima (HE, II.V)
Comparemos a descrição de Beda com algumas citações de O Senhor dos Aneis sobre a Casa de Eorl:
Assim falou um poeta esquecido há muito tempo em Rohan, relembrando como era alto e belo Eorl, o Jovem, que veio cavalgando do norte; e havia asas nas patas de seu corcel, Felaróf, pai dos cavalos [...] (As Duas Torres, 107)
“Os antepassados de Eorl afirmavam ser descendentes dos reis de Rhovanion, cujo reino ficava além da Floresta das Trevas antes das invasões dos Carroceiros, e dessa forma consideravam-se parentes dos reis de Gondor que descendiam de Eldacar” (O Retorno do Rei, Apêndice A (II), p. X)
O apelo ao pai, e ao pai do pai, e ao pai do pai do pai, numa linha reta até o ancestral mais venerável ou cuja memória se quer evocar é comum nas crônicas medievais e, certamente, Tolkien tinha acesso direto a esses documentos, sabia como as fontes organizavam uma linhagem real para garantir a legitimidade de um soberano, de um nobre ou de um cavaleiro a partir da sua ancestralidade. Não foi só a língua anglo-saxã escolhida para dar uma certa identidade aos rohirrim, muitos outros elementos textuais, culturais e sociais foram detalhadamente pensados para construir o povo dos cavaleiros.
Os homens de Rohan guerreiam armados com espadas, lanças, escudos e montados em cavalos, armas tipicamente medievais resgatadas por Tolkien para compor os rohirrim. As guerras são travadas a golpes de lança contra escudos, espadas se chocando contra espadas, soldados sobre cavalos lutando contra homens e outras criaturas a pé.
Então chegaram homens trazendo vestimentas de guerra do tesouro do rei, e vestiram Aragorn e Legolas em malhas reluzentes. Escolheram também elmos, e escudos redondos: neles havia gravuras enfeitadas com ouro e pedras, verdes, vermelhas e brancas. [...] [Gimli] escolheu uma touca de ferro e couro que serviu bem em sua cabeça redonda, e pegou também um pequeno escudo. Esta peça exibia o cavalo correndo, branco sobre verde, que era o emblema da Casa de Eorl (As Duas Torres, p. 122)
O que o mundo construído por Tolkien tem em comum com o mundo medieval são inspirações, ou seja, ele não pretendia recriar o mundo medieval exatamente como era, mas compor um mundo fantástico onde homens mortais convivem com elfos, anões, hobbits, orcs, magos, etc. O mundo medieval foi reinterpretado pelo autor em um tipo de obra que gozou daí por diante de uma grande atração no público em geral: um mundo onde temas medievais convivem explicitamente com o fantástico, com a magia e com seres ausentes no cotidiano dos seres humanos, acessíveis somente pela literatura.
John Ronald Reuel Tolkien foi um filólogo britânico nascido no Estado Livre de Orange, hoje África do Sul, respeitado no meio acadêmico, professor da Universidade de Oxford, apaixonado por línguas e responsável pela criação de dezenas de idiomas inspirados e compostos por línguas europeias modernas e arcaicas como o anglo-saxão, o gótico, o finlandês moderno, o inglês moderno, o nórdico antigo e o galês antigo.
Na concepção do reino de Rohan, Tolkien recuperou um passado anglo-germânico para compor a língua dos cavaleiros. Em Contos Inacabados, Christopher Tolkien, editor das obras e filho de J.R.R. Tolkien, comenta sobre as intenções do pai sobre a confecção dos nomes dos antepassados dos rohirrim:
É um fato interessante, que creio não estar mencionado em nenhum escrito de meu pai, que os nomes dos primeiros reis e príncipes dos Homens do Norte e dos Éothéod [ancestrais dos rohirrin] têm forma em gótico, não em inglês antigo (anglo-saxão) como no caso de Léod, Eorl e os rohirrim posteriores. Vidugavia está latinizado na grafia, representando o gótico Widugauja (“habitante da floresta”), um nome gótico registrado, e de modo semelhante Vidumavi, em gótico Widumawi (“donzela da floresta”). Marhwini e Marhari contêm a palavra gótica marh, “cavalo”, correspondente ao inglês antigo mearh, plural mearas, a palavra usada no Senhor dos Anéis para os cavalos de Rohan; wini, “amigo”, corresponde ao antigo inglês winë, visto nos nomes de vários Reis da Terra dos Cavaleiros. Visto que, como está explicado no Apêndice F (II) [de O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei], a intenção era que a língua de Rohan “se assemelhasse ao anglo-saxão”, os nomes dos ancestrais dos rohirrim foram expressos nas formas da mais antiga língua germânica registrada. (Contos Inacabados, p. 491, nota 6)
Dentro de sua linha narrativa, Tolkien usou um mecanismo lingüístico e traduziu os nomes e o próprio idioma rohirrim para um formato existente no passado europeu medieval. Na abertura de O Hobbit, Tolkien escreveu: “Esta é uma história de muito tempo atrás. Naquela época, as línguas e as letras eram muito diferentes das que empregamos hoje. O inglês foi usado para representar essas línguas [...]”. Como linguista, ele tinha a consciência e da historicidade das línguas e usou uma forma academicamente criativa de lidar com o problema de escrever em inglês uma história que foi vivida por personagens que falavam suas próprias línguas. O escritor fez um paralelo entre essas línguas e o inglês, especialmente a Língua Comum, uma língua geral falada pela maioria dos habitantes da Terra Média, descendente de uma língua falada pelos primeiros homens a aparecer no mundo.
Dessa forma, os nomes dos antigos rei e chefes são grafados por formas latinizadas do idioma gótico (Vidugavia, Vidumavi, Marhiwini, Marhari) como fazendo um paralelo aos chefes godos que reclamaram terras e estabeleceram reinos durante a Antiguidade Tardia (entre os séculos III d.C. e VIII d.C.), usando apenas essa língua antiga como uma tradução aproximada do espírito de ancestralidade que implica essa língua germânica do século IV d.C. Depois, com a passagem dos anos e a transformação da sociedade rohirrim, os nomes passam a ser grafados em anglo-saxão, ou inglês antigo, língua que Tolkien dominava e escolheu para denominar seus personagens. Ou seja, se o inglês foi a língua escolhida para descrever esse mundo e seus personagens, o anglo-saxão (ou inglês antigo), antepassado do inglês moderno, foi usado para descrever o mundo e os personagens ancestrais; e foi aplicada a mesma lógica para a língua goda, a língua germânica mais antiga documentada, mas sem línguas modernas descendentes.
Os nomes com os quais Tolkien batizou os rohirrim não são apenas inspirados no anglo-saxão, mas, por vezes, são aglutinações de radicais ou de palavras do inglês antigo, como, por exemplo, o primeiro rei da Terra dos Cavaleiros enquanto reino independente: Eorl, que em anglo-saxão é traduzido por “chefe”, “líder” ou “nobre” (e que deu origem ao título de nobreza earl no inglês moderno, que não tem tradução correspondente para o português).
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Tolkien não usou o anglo-saxão e as outras línguas arcaicas europeias apenas como inspiração para a confecção de línguas originais a serem usadas em sua criação, ou seja, ele não modificou o idioma real para diversificar o conteúdo de sua mitologia, mas, nesse caso, traduziu as particularidades de seu Mundo Secundário por algo que se aproximasse de um mundo medieval conhecido e recuperado. A particularidade de Tolkien não é a de criar um universo que fosse medieval, mas usar o universo medieval como ferramenta para acessar e traduzir toda a mitologia tolkeniana. O próprio autor deixa claras as suas intenções em uma nota de rodapé dos Apêndices d’O Senhor dos Anéis.
Este processo lingüístico não implica que os rohirrim se assemelhassem muito aos antigos ingleses sob outros aspectos, na cultura ou na arte, nas armas ou nos modos de guerrear, mas apenas de maneira geral, em função das circunstâncias: um povo mais simples e primitivo vivendo em contato com uma cultura mais elevada e venerável, ocupando terras que outrora haviam sido parte do seu domínio. (O Retorno do Rei, p. 429, nota 6)
Os rohirrim não são os ingleses – ou a metonímia deles –, mas um povo que guarda semelhanças com eles e que, por esse motivo, o autor resolveu traduzir com as referências do Mundo Primário (a nossa realidade) as realidades de seu Mundo Secundário.
Em comparação com o que é comum aos autores de ficção fantástica, o processo de criação de sua mitologia foi particularmente excêntrico. Tolkien era um professor de filologia e como linguista acadêmico deu início a sua criação pelas línguas a serem faladas por personagens que ainda seriam inventados, interagindo em cenários que não tinham sido moldados. Escolhendo as diferentes influências linguísticas para os idiomas que codificava, ele foi dando forma a diferentes povos com diferentes características e organizações sociais complexas que foram sendo extraídas de suas matrizes lingüísticas, ou seja, o idioma dos rohirrim nasceu primeiro e, a partir dele, suas criações foram despertando em um sentido quase religioso de “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós [...]” (João 1:14); ou, numa leitura mais sócio-linguística, na ideia de que o mundo se dá a partir da linguagem. Em retrospecto, o trajeto que Tolkien fez foi de tomar o gótico e o anglo-saxão como o ponto de partida para os rohirrim, o que não significa dizer que o trajeto percorrido por esse povo deva ser, necessariamente, o mesmo que gerou os ingleses modernos.
A mitologia criada por J.R.R. Tolkien é muito mais vasta e complexa (e coerente, como se deve esperar de um Mundo Secundário) do que um romance de cavalaria produzido como válvula de escape de uma realidade imediata, como suas obras foram rotuladas por críticos contemporâneos à sua época. A Terra-média, e nela Rohan, a Terra dos Cavaleiros, é imperfeita e tão passível de corrupções, problemas e vicissitudes quanto a história europeia medieval, isto é, não há um mundo perfeito onde todos os seres coexistem em harmonia, mas há processos históricos que atingem o camponês e o senhor, guerras que são lutadas por diferentes estratos da sociedade, línguas e costumes que unem iguais e geram desconfiança ao forasteiro. Esse mundo foi criado por um homem e como tal é esperado que as relações históricas que tenha com o ambiente em que habita sejam respeitadas por mais que existam elementos fantásticos em sua narrativa que possam subverter as leis naturais do nosso Mundo Primário.
Bibliografia
BEDA; SELLAR, A.M. (trad.). Ecclesiastical History of England. Londres: George Bell and Sons (1907)
HUNT, Peter (ed.), International Companion Encyclopedia of Children’s Literature. Nova York: Routledge (2005).
PINHEIRO, Renata K. Éowyn, a Senhora de Rohan: uma análise linguístico-discursiva da personagem de Tolkien em O Senhor dos Aneis. 2007. 170f. Dissertação (Mestrado em Letras). Pelotas: UCPEL.
TOLKIEN, J.R.R., TOLKIEN, Christopher (ed.), Contos Inacabados: De Númenor e da Terra-média. São Paulo: WMF Martins Fontes (2009).
TOLKIEN, J.R.R. O Hobbit. São Paulo: Martins Fontes (2002)
TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis: segunda parte: As Duas Torres. São Paulo: Martins Fontes (2002).
TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis: terceira parte: O Retorno do Rei. São Paulo: Martins Fontes (2000).
TOLLER, T.N. An Anglo-Saxon dictionary, based on the manuscript collections of the late Joseph Basworth. Oxford University Press (1898).
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