Dá um play no vídeo aqui embaixo, coloca um fone, esqueça do mundo moderno por 8 minutos e meio enquanto você passeia por Paris por volta de 1735. Depois a gente conversa.
O que você acabou de assistir foi uma reconstrução de um projeto multimídia e multidisciplinar chamado "projeto Bretez", comandado por Daniel Roche, historiador e professor emérito do Collège de France, e que integra uma equipe de especialistas de várias áreas diferentes: Mylène Pardoen, musicóloga responsável pela ambientação sonora; professores e conferencistas da Universidade Lumière Lyon 2, da Universidade de Caen-Basse-Normandie, da Universidade de Nantes e da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, além do apoio de historiadores como Arlette Fage, especialista no século XVIII, Alain Corbin, pesquisador sobre a história dos sentidos e Youri Carbonier, pesquisador da construção de casas sobre pontes.
A reconstrução visual foi feita com base em uma documentação muito extensa, tanto dos arquivos franceses quanto visuais: descrições da cidade, mapas, pinturas, gravuras. A combinação das pesquisas históricas levantando informações arquitetônicas e urbanísticas sobre Paris no século XVIII com a modelagem em três dimensões tem o objetivo imediato de fazer o visitante passear por um cenário, ou seja, a reconstrução não significa que estamos vendo Paris exatamente como era há 300 anos, longe disso, é a reconstrução de um momento do tempo, afinal, as cidades são dinâmicas, mudam de edifícios, ruas e de estilos o tempo todo. Vamos dizer que é uma base para criar uma sensação de como deveria ser a capital em cerca de 1735.
O visual é complementado pela reconstrução sonora, o que torna tudo mais interessante. Como é possível saber que tipo de sons era possível escutar andando pela rua dos açougues no século XVIII? Mylène Pardoen foi a responsável por esse trabalho extenso e minucioso.
“Todos os sons são naturais. Ruídos de máquinas, por exemplo, foram gravados usando aparelhos antigos autênticos” diz Pardoen. A cartografia é importante para lançar luz sobre a precisão da acústica dos diferentes lugares. O lugar era mais aberto? Existiam árvores em volta? Os prédios eram altos? Havia túneis dando passagem entre prédios ou praças? Cada particularidade tem uma acústica, o que significa que o som viaja e chega aos ouvidos de maneira diferente e essa é a missão de Mylène, uma musicóloga que contribui para uma área recente da arqueologia, a arqueologia das paisagens sonoras. Por exemplo, se estamos na região da Grande Boucherie, o Grande Açougue, os documentos contam que havia mercadores de carnes e peixes. O que eles usavam para trabalhar, os documentos nos contam? Contam, mostram que tipo de instrumentos usavam para talhar os animais, o que permite reconstruir o som de uma faca de ferro acertando uma tábua de madeira enquanto o peixeiro arranca as tripas de um arenque. É um trabalho extremamente detalhado e trabalhoso, mas que dá resultados muito interessantes, como a gente percebe no passeio.
A cidade, as ruas e os edifícios
No começo do passeio se vê um prédio com um túnel e duas torres que a legenda chama de "Le Grand Châtelet", uma fortaleza do Antigo Regime que abrigava a sede da justiça real, civil e criminal, administrada pelo preboste de Paris, um agente do um rei que ministrava a justiça e administrava propriedades. O preboste era um homem com um pé na aristocracia francesa e um juiz, um homem que fazia cumprir a lei dentro do reino da França em nome do rei da França; em cerca de 1735 quem ocupava esse cargo era Gabriel-Jérôme de Bullion, conde de Esclimont.
A origem do Châtelet é pouco conhecida, porque falta documentação nos arquivos pra descobrir os detalhes da construção e dos usos antes da Idade Média, mas ele já tinha algumas centenas de anos quando foi demolido aos poucos no início do século XIX.
A fortaleza era um ponto vital na Paris do Antigo Regime porque os mais variados casos eram julgados dentro das suas muralhas e ao redor dela funcionavam os grandes mercados e onde a vida cotidiana dos franceses era intensa. Por isso a escolha do lugar pra reconstrução em 3D pelos especialistas, onde os barulhos de lojistas, artesãos, marinheiros e lavadeiras nas margens do Sena eram muito diversos.
O mapa de Turgot
Um dos documentos mais essenciais para descobrir Paris setencentista é o mapa de Turgot, confeccionado entre 1734 e 1736. Em 1734, Michel-Étienne Turgot, preboste dos mercadores de Paris - um outro tipo de preboste, responsável pela coordenação e administração dos comerciantes de Paris -, encomendou um mapa da cidade a Louis Bretez (que dá o nome a esse projeto de reconstrução virtual), arquiteto e cartógrafo da Real Academia de Pintura e Escultura. O mapa de Bretez é uma obra-de-arte extremamente precisa, desenhado em uma perspectiva de dois pontos de fuga. A precisão do francês foi melhorada pelo passe-livre que tinha para visitar e desenhar os edifícios, jardins, ilhas e palácios. O resultado é uma carta cartográfica de 250 cm x 322 cm (um mapa de 2 metros e meio de altura seria impossível reproduzir por meio de uma gráfica, a tecnologia simplesmente não era suficiente, por isso o atlas da cidade foi dividido em 20 quadros de 50 cm x 80 cm).
É interessante que depois de dois anos de pesquisas e, provavelmente, milhares de rascunhos e folhas de papel, o mapa passou a ser conhecido pela história como o mapa de Turgot, o nobre que o encomendou, e não o mapa de Bretez, o cartógrafo que o desenhou.
Na Wikimedia Commons existem algumas reproduções do mapa: o plano cartográfico e o mapa isonômico (tanto inteiro quanto separado):
E qual é a relevância de se estudar com tanta precisão e minúcia de detalhes um pedaço tão pequeno tanto no espaço quanto no tempo? Em uma perspectiva acadêmica, esse é um exemplo maravilhoso de como as tecnologias inovadoras e inventivas ajudam a construção de um conhecimento histórico. A multidisciplinaridade é fundamental pra projetos desse tipo, o projeto Bretez não é único no mundo, e tudo indica que o desenvolvimento de técnicas novas ajudam a ampliar o nosso conhecimento de mundo e de história. De um ponto de vista museológico, reconstruções como essa podem ajudar museus no mundo inteiro a dar uma dimensão mais real e menos subjetiva da História. Passamos a vida escolar inteira estudando História e quantas vezes tivemos a noção de que estávamos falando de pessoas reais que viveram, que trabalharam horas por dia cortando carne ou comandando um exército? Existe um ganho acadêmico e um ganho didático muito valioso disponível. História é isso, pelo menos pra mim.
Bibliografia
BRIMBENET-PRIVAT, Michele. Série Y. Châtelet de Paris. Centre Historique des Archives Nationales (Disponível em: <http://www.archivesnationales.culture.gouv.fr/chan>).
CAILLOCE, Laure. “Écoutez le Paris du XVIIIe siècle”, CNRS, Le Journal. (Disponível em: <https://lejournal.cnrs.fr/articles/ecoutez-le-paris-du-xviiie-siecle> ).
DESMAZE, Charles. Le Chatelet de Paris. Son organisation, ses priviléges. Paris: Librairie Académique (1863).
BRETEZ. Projet Bretez. (disponível em: <https://sites.google.com/site/louisbretez/>. Acesso em 24/03/23)
LE TERRITOIRE boucher” (Em: <grande-boucherie.chez-alice.fr/Grand-Chaelet-Grande-Boucherie.htm>. Acesso em 10/05/16).
Imagens
Thomas Charles Naudet (1778 – 1810). Le Grand Châtelet. (C) RMN-Grand Palais / Agence Bulloz
Le Grand Châtelet de Paris. Coleção Hippolyte Destailleur (1822 – 1893). Biblioteca Nacional da França.
Quase uma máquina do tempo esse vídeo ❤️